O personagem Calvin diz que vai fazer uma "grande peça dramática".
17/11/2024
29/09/2024
A MÃO DO MACACO - Conto Clássico de Terror - W. W. Jacobs
Conto completo
Fonte: https://www.contosdeterror.site/2018/09/a-mao-do-macaco-conto-classico-de.html
Romancista e contista inglês, W. W. Jacobs (1863 – 1943), malgrado tenha se dedicado precipuamente ao humor, é conhecido sobretudo pela obra “A Mão do Macaco”. Este conto — uma das mais famosas narrativas de terror já escrita — foi publicado originariamente na coletânea “A Dama da Barca”, de 1892, mas continua a atrair admiradores nos dias atuais, dentre eles o célebre romancista norte-americano Stephen King. Na breve narrativa, uma mão mumificada de macaco constitui-se num amuleto que tem o poder de conceder, a quem a possui, três desejos. Mas, por interferir na ordem natural dos acontecimentos, os desejos são satisfeitos a um alto — e terrível — preço.
Lá fora, a noite estava fria e úmida, mas, na pequena sala de Laburnam Villa, os postigos estavam cerrados e o fogo ardia intensamente. Pai e filho jogavam xadrez. O primeiro tinha ideias próprias sobre o jogo que envolviam mudanças radicais, colocando o rei em tão graves e desnecessários perigos que provocava comentários até mesmo da grisalha senhora que tricotava placidamente junto à lareira.
– Escute o vento – disse o Sr. White que, percebendo tarde demais que cometera um erro fatal, cuidava benevolamente para que o filho não o percebesse.
—Estou ouvindo — disse o último, examinado impiedosamente o tabuleiro, ao estender a mão.
—Xeque.
—Não creio que ele venha esta noite — disse o pai, com a mão a pousada sobre o tabuleiro.
—Mate! —replicou o filho.
—Este é o lado ruim de viver em um lugar tão remoto — o Sr. White vociferou, com uma súbita e inesperada violência. — De todos os lugares terríveis, distantes e lamacentos para se morar, este é o pior. O caminho é um lamaçal e a estrada é uma torrente. Não sei o que essa gente está pensando. Somente porque há apenas duas casas na estrada, eles não encontram motivo por que se importar.
—Não se preocupe, querido — disse, conciliatória, a mulher. — Da próxima vez, talvez você vença a partida.
O Sr. White ergueu os olhos bruscamente, a tempo de interceptar um olhar de cumplicidade entre mãe e filho. As palavras morreram em seus lábios e ele escondeu um sorriso de culpa sob a barba fina e grisalha.
—Aí vem ele — disse Herbert White, quando o portão bateu barulhentamente e passos pesados se aproximaram da porta. O velho levantou-se com uma pressa hospitaleira. Ouviram-no cumprimentar o visitante, que retribuiu o cumprimento. A senhora White tossiu delicadamente quando o marido entrou na sala, seguido por um homem alto e corpulento, de olhos pequenos e face avermelhada.
—Major Morris — disse ele, apresentando-o.
O major apertou as mãos e, sentando-se no lugar oferecido, junto à lareira, observou satisfeito o anfitrião trazer uísque e copos, e pôr uma pequena chaleira de cobre no fogo.
Ao terceiro copo, os seus olhos tornaram-se mais brilhantes e ele começou a falar. O pequeno círculo familiar contemplava com vívido interesse este visitante de lugares distantes, enquanto ele empertigava os largos ombros na cadeira e falava de paisagens excêntricas e feitos audazes, de guerras, epidemias e povos estranhos.
—Vinte e um anos nisto — disse o Sr. White, voltando-se para a mulher e o filho. — Quando ele partiu, era um simples moço de armazém. Agora, olhem só para ele.
—Ele não parece ter-se saído mal — disse a Sra. White, educadamente.
—Eu gostaria de visitar a Índia — disse o velho. — Somente para conhecer um pouco, você sabe.
—Aqui, você estará melhor — disse o Major, sacudindo a cabeça. Deixou o copo vazio sobre a mesa e, suspirando baixinho, sacudiu de novo a cabeça.
—Eu gostaria de ver esses templos antigos. Faquires, malabaristas — disse o velho. — O que foi mesmo que você começou a me contar, certo dia, acerca da mão de um macaco, ou coisa semelhante, Morris?
—Nada — disse abruptamente o militar. — Ao menos nada de que valha a pena ser ouvido.
—Mão de macaco? — indagou a Sra. White, curiosa.
—Bem, é apenas um pouco do que se pode chamar de magia — disse o major, bruscamente.
Os três ouvintes inclinaram-se para frente, interessados. Distraidamente, o visitante levou aos lábios o copo vazio, e, em seguida, baixou-o novamente. O anfitrião tornou a enchê-lo.
—Vejam —disse o major, mexendo no bolso. — É apenas uma pequena mão, comum, mumificada.
Ele tirou algo do bolso e exibiu aos presentes. A Sra. White recuou com um esgar. Seu filho, porém, examinou a mão mumificada com curiosidade.
—Mas o que é que há de especial nela? — perguntou o Sr. White, que a tomou da mão do filho e, depois de examiná-la, deitou-a sobre a mesa.
—Sobre ela, um velho faquir lançou um encanto — disse o major. — Um homem muito santo. Queria ele demonstrar que o destino determina a vida das pessoas e aqueles que nele interferem o fazem para a sua ruína. Ele lançou sobre essa mão um feitiço para que três diferentes pessoas pudessem formular três distintos pedidos.
O major falou de uma maneira tão impressionante que os seus ouvintes sentiram suas risadas soarem um tanto abaladas.
—Bem, então por que o senhor não faz os seus três pedidos? — indagou, astuciosamente, Herbert White.
O militar olhou para ele como as pessoas maduras costumam olhar para a juventude presunçosa.
—Eu já os fiz — disse calmamente o major, e o seu rosto maculado empalideceu.
—E os três pedidos formulados foram realmente atendidos? — perguntou a Sra. White.
—Foram —respondeu o major, e o copo chocou-se contra seus fortes dentes.
—E ninguém mais renovou os pedidos? — perguntou a velha senhora.
—A primeira pessoa teve, sim, os seus desejos satisfeitos —respondeu. — Eu não sei quais foram os dois primeiros pedidos. Mas o terceiro desejo foi a morte. Foi dessa maneira que eu obtive a mão do macaco.
Sua entonação era tão solene que o silêncio caiu sobre o grupo.
—Se você conseguiu realizar todos os três pedidos, Morris, a mão não lhe serve mais para nada — disse, por fim, velho homem. — Por que, então, a conserva?
O militar abanou a cabeça.
—Por simples capricho, creio eu —disse ele, lentamente.
—Se pudesse fazer mais outros três pedidos — indagou o velho, olhando-o fixamente –, você os faria?
—Eu não sei — disse o outro. — Eu não sei.
O major tomou a mão do macaco, balançou-a entre os dedos polegar e indicador e, subitamente, lançou-a ao fogo. White, com um ligeiro grito, abaixou-se e arrancou-a de lá.
—Melhor seria que a deixasse queimar — disse o militar, solenemente.
—Se você não mais a quer — disse o velho —, dê-a para mim.
—Não —disse obstinadamente o amigo. — Eu a joguei no fogo. Se você quiser ficar com ela, não me culpe pelo que vier a acontecer. Lance-a novamente no fogo, como um homem sensato.
O outro sacudiu a cabeça e examinou de perto a sua nova pertença.
—Como é que se faz o pedido?
—Segure-a em sua mão direita e formule o pedido em voz alta — disse o Major. — Mas eu o advirto quanto às consequências.
—Parece as Mil e uma Noites —disse a Sra. White, levantando-se e começando a pôr à mesa. — Você não acha que poderia pedir quatro pares de mãos para mim?
O marido tirou o talismã do bolso e, em seguida, todos três caíram na gargalhada quando o major, com um olhar assustado no rosto, segurou-o pelo braço.
—Se quer mesmo fazer um pedido — disse ele rispidamente —, deseje algo sensato.
O Sr. White guardou novamente o amuleto no bolso e, arrumando as cadeiras, chamou o amigo à mesa com um aceno. Durante o jantar, o talismã foi, de certo modo, esquecido, e depois os três escutaram, encantados, o segundo capítulo das aventuras do militar na Índia.
—Se a história sobre a mão do macaco não for mais verdadeira do que as que ele nos contou — disse Herbert, quando a porta se fechou atrás do convidado, a tempo de ele apanhar o último trem —, então não devemos dar muito crédito a ela.
—Você deu alguma coisa pela mão? — perguntou a Sra. White, olhando atentamente para o marido.
—Uma bagatela —disse ele, corando levemente. — Ele não queria receber, mas eu o fiz aceitar. E ele insistiu novamente para que eu a jogasse fora.
—Sem dúvida — disse Herbert, com um horror fingido — vamos ser ricos, famosos e felizes. Pai, somente de início, peça para ser um imperador, e o senhor não mais será dominado por mamãe.
Ele correu em volta da mesa, perseguido por uma injuriada Sra. White, armada com uma capa de poltronas.
O Sr. White sacou a mão do macaco do bolso e olhou para ela com um ar de dúvida.
—Eu não sei o que pedir. Isto é um fato — disse ele lentamente. — Parece-me que tenho tudo o quanto quero.
—Se o senhor liquidasse o débito da casa, ficaria muito feliz, não é mesmo? — disse Herbert com a mão pousada no ombro do pai. —Bem, peça então duzentas libras. É justamente o que lhe falta.
O pai, com um sorriso envergonhado da própria credulidade, ergueu o talismã, enquanto o filho, com uma expressão solene, um tanto comprometida pela piscadela dirigida à mãe, sentou-se ao piano e extraiu alguns acordes grandiloquentes.
—Eu desejo duzentas libras — disse o pai em clara voz.
Um belo acode de piano felicitou as palavras, mas essas foram interrompidas por um grito estridente do velho homem. A mulher e o filho correram até ele.
—Ela se mexeu — disse ele, com um olhar de nojo para o objeto, que caíra ao chão. — Quando eu formulei o meu pedido, ela se contorceu em minhas mãos como uma cobra.
—Bem, eu não estou vendo o dinheiro — disse o filho, enquanto a apanhava e a punha sobre a mesa. — E aposto que nunca o verei.
—Deve ter sido imaginação sua, pai — disse a mulher, olhando-o ansiosamente.
—Não faz mal. Não houve nada. Mas, ainda assim, a coisa me abalou.
Sentaram-se perto da lareira novamente, enquanto os homens terminavam de fumar os seus cachimbos. Lá fora, o vento soprava ainda mais vigorosamente. O velho sobressaltou-se ao ouvir o som de uma porta batendo no andar superior. Um silêncio estranho e deprimente abateu-se sobre todos os três, e os envolveu até que o velho casal se levantou para dormir.
—Espero que o Senhor encontre o dinheiro enrolado em um grande saco, bem no meio da cama — disse Herbert, ao dar-lhe boa noite —, e algo de terrível, agachado em cima do guarda-roupas, o espreite, enquanto o senhor embolsa o seu ganho fácil.
Ele permaneceu sentado, sozinho, na escuridão. Observava o fogo fenecer e via rostos formando-se nas chamas. A última cara era tão horrível, tão simiesca, que ele a contemplou com assombro. A imagem era de uma vivacidade tal que Herbert, com um sorriso inquieto, procurou na mesa um copo d’água para jogar sobre ela. Agarrou a mão do macaco, sentindo um breve calafrio. Então, limpou a própria mão no casaco e retirou-se para a cama.
II
Na manhã seguinte, enquanto tomava o café da manhã sob a luz do sol invernal, que pairava sob a mesa, Herbert riu de seus temores. Havia na sala um ar de prosaica higidez que faltara na noite anterior. E a mão do macaco, enrugada e suja, atirada negligentemente sobre o aparador, não inspirava nenhuma grande crença em suas virtudes.
—Eu creio que todos os velhos militares são iguais — disse a Sra. White. — Que ideia a nossa, de dar ouvidos a estas tolices! Como se pode acreditar, nos dias de hoje, em talismãs que nos concedem desejos? E se as duzentas lhe libras forem concedidas, o que de mau poderá lhe acontecer, pai?
—Será mau se as libras caírem do céu, bem em cima da cabeça dele — disse Herbert, frivolamente.
—Segundo Morris, as coisas aconteciam com tanta naturalidade —disse o pai — que você, se o quisesse, poderia considerar uma simples coincidência.
—Bem, não lance mão do dinheiro antes que eu volte — disse Herbert, ao se levantar da mesa. — Temo que o senhor se transforme em um homem mau e avarento, e nós tenhamos que repudiá-lo.
A mãe sorriu, acompanhou-o até a porta e o viu afastar-se pela estrada. De volta à mesa, ela parecia divertir-se com a credulidade do marido. Mas isto não a impediu de correr à porta quando o carteiro bateu, nem de fazer referência a majores reformados beberrões, quando descobriu que o correio trouxera apenas a conta do alfaiate.
—Com certeza, Herbert fará outra observação irônica quando voltar — disse ela, quando se sentaram para jantar.
—Sem dúvida — disse o Sr. White, servindo-se de um pouco de cerveja. — Mas, seja como for, a coisa se contorceu na minha mão. Juro que sim.
—Você imaginou que ela se mexeu — disse a Sra. White, suavemente.
—Eu estou dizendo que ela se mexeu — o outro replicou. — Quanto a isto, não tenho dúvidas. Eu tinha acabado... O que houve?
A mulher não respondeu. Ela estava observando os movimentos misteriosos de um homem do lado de fora que, olhando indeciso para a casa, parecia tentar decidir-se a entrar. Numa conexão mental com as duzentas libras, ela percebeu que o estranho estava bem-vestido e usava um reluzente chapéu de seda novo. Por três vezes, ele parou no portão e depois retrocedeu. Na quarta tentativa, pôs a mão sobre ele e, em seguida, com uma súbita resolução, abriu-o e avançou. No mesmo momento, a Sra. White colocou a mão atrás de si, desatou apressadamente o avental e colocou esta útil peça do vestuário sob a almofada de sua cadeira.
Ela conduziu o estranho — que parecia pouco à vontade — à sala. Ele a contemplou furtivamente, e ouviu, com ar preocupado, a velha senhora desculpar-se pela aparência da sala e pelo casaco do marido, uma vestimenta que ele geralmente reservava ao jardim. Ela, então, esperou, tão pacientemente quanto o seu sexo permitia, que ele abordasse o motivo da visita, mas ele permaneceu, a princípio, enigmaticamente calado.
—Eu... Pediram-me que viesse — disse ele finalmente. Abaixou-se e extraiu um pedaço de algodão da calça. —Eu venho da parte de Maw & Meggins.
A velha senhora teve um sobressalto.
—Aconteceu alguma coisa? — ela perguntou, ofegante. — Aconteceu alguma coisa a Herbert? O que foi? O que foi?
O marido se interpôs:
—Espere, espere, mãe — disse ele rapidamente. — Sente-se e não tire conclusões precipitadas. Certamente, o senhor não nos trouxe más notícias, não é mesmo? — disse o velho, olhando o outro, ansiosamente.
—Eu sinto muito... — começou o visitante.
—Ele está ferido? — interpelou a mãe.
O visitante inclinou-se, assentindo.
—Gravemente ferido — ele disse em voz baixa. —Mas já não mais sente dor.
—Oh, graças a Deus! — disse a senhora, apertando as mãos. —Graças a Deus! Graças...
Mas estacou subitamente, quando o terrível significado daquela afirmativa desmoronou sobre ela. Ela viu a confirmação de seus temores no rosto esquivo do outro. Então prendeu a respiração e, voltando-se para o pouco arguto marido, pôs a mão trêmula sobre ele. Houve um longo silêncio.
—Ele foi apanhado pela máquina —disse finalmente o visitante, em voz baixa.
—Apanhado pela máquina — repetiu, aturdido, o Sr. White.
Ele se sentou, olhando fixamente pela janela e, tomando a mão da mulher entre as suas, apertou-a, como costumava fazer nos tempos de namorados, há cerca de quarenta anos.
—Ele era o último filho que nos restava — disse ele, voltando-se para o visitante. — É difícil.
O outro tossiu e, levantando-se, caminhou lentamente até a janela.
—A empresa me pediu que lhes transmitisse os sinceros pêsames pela grande perda — disse ele, sem olhar em volta. —Eu imploro que compreendam que sou apenas um empregado e apenas cumpro ordens.
Não houve resposta. O rosto da senhora estava lívido, os olhos fixos, a respiração inaudível. No rosto do marido havia um olhar que o seu amigo major poderia ter ostentado em seu primeiro conflito armado.
—Quero dizer que a Maw & Meggins se exime de qualquer responsabilidade — prosseguiu o outro. — Eles não admitem qualquer responsabilidade no evento, mas, em consideração aos serviços prestados por seu filho, pretendem ofertar-lhes uma certa quantia, a título de compensação.
O Sr. White largou a mão da mulher e, pondo-se de pé, dirigiu ao visitante um olhar de horror. Seus lábios secos articularam as palavras:
—Quanto?
—Duzentas libras — foi a resposta.
Sem atinar para o grito da esposa, o velho sorriu debilmente, estendeu a mão como um homem cego e caiu desfalecido, como um fardo, no chão.
III
No imenso cemitério novo, a umas duas milhas de distância, os velhos sepultaram o seu morto e voltaram para a casa, mergulhada na sombra e no silêncio. Tudo acabara tão rapidamente que, a princípio, eles mal se davam conta do que ocorrera. Permaneceram em um estado de expectativa, como se algo mais estivesse por acontecer — algo que lhes aliviasse aquele fardo, pesado demais para os seus velhos corações.
Mas os dias se passaram e a expectativa deu lugar à resignação — à resignação sem esperança dos velhos, às vezes tomada erroneamente por apatia. Algumas vezes eles sequer trocavam uma palavra, pois agora não tinham mais sobre o que conversar, e os dias eram longos e tediosos.
Foi cerca de uma semana depois que o velho, acordando subitamente de noite, estendeu a mão e viu que estava sozinho. O quarto estava escuro e o som de um choro lastimoso vinha da janela. Ele sentou-se na cama e ficou a escutar.
—Volte — disse ele, ternamente. — Você vai sentir frio.
—Está mais frio para o meu filho — disse a senhora, que chorou novamente.
Os sons de seus soluços desvaneceram no ouvido do marido. A cama estava quente e os seus olhos pesados de sono. Ele dormitou intermitentemente e depois caiu no sono, até ser acordado, com um sobressalto, pelo grito selvagem da mulher.
—A mão! — ela chorava descontroladamente. — A mão do macaco!
Ele se levantou, alarmado.
—Onde? Onde está? O que aconteceu? Ela transpôs, cambaleante, o quarto, achegando-se a ele.
—Eu quero a mão do macaco — ela disse em voz baixa. — Você a destruiu?
—Ela está na sala de estar, na prateleira — ele respondeu, surpreso. — Por quê?
Ela chorou e riu ao mesmo tempo e, inclinando-se, beijou-lhe o rosto.
—Somente agora pensei nisto — disse ela histericamente. — Por que não pensei nisto antes? Por que você não pensou nisto antes?
—Pensar em quê? — ele inquiriu.
—Nos dois outros desejos — ela respondeu rapidamente. — Nós só fizemos um pedido.
—Não acha que já foi o suficiente? — ele replicou, enraivecido.
—Não! — ela gritou, triunfante. — Faremos mais um. Desça e a pegue logo. Deseje que o nosso garoto viva novamente.
O homem sentou-se na cama e afastou os lençóis de seus membros trêmulos.
—Meu Deus, você está louca! — ele gritou, horrorizado.
—Pegue-a —disse ela, ofegante. Pegue-a depressa e faça o pedido... Oh, meu filho, meu filho!
O marido riscou um fósforo e acendeu uma vela.
—Volte para a cama —disse ele, hesitante. — Você não sabe o que está dizendo.
—Nós tivemos o primeiro desejo satisfeito — disse a senhora, febrilmente. — Por que não o segundo?
—Foi só uma coincidência — gaguejou o velho.
—Vá buscá-la e faça o pedido — gritou a mulher, tremendo de excitação.
O velho virou-se, olhou-se para ela e sua voz tremeu:
—Ele está morto há dez dias e, além disso... eu não queria que você soubesse, mas eu só consegui reconhecê-lo pelas roupas. Se ele estava terrível demais para que você o visse, imagine como não estará agora.
—Traga-o de volta! — gritou a velha senhora, e o arrastou até a porta. — Você acha que tenho medo do filho que criei?
Ele desceu na escuridão e tateou até a sala de estar e, depois, até a lareira. O talismã estava em seu lugar e um medo horrível de que o desejo ainda não formulado pudesse trazer de volta, em sua presença, o filho mutilado, antes que pudesse evadir-se da sala, apoderou-se dele. Prendeu a respiração ao perceber que havia perdido a direção da porta e, com a testa umedecida por um suor frio, deu a volta ao redor da mesa, encontrou a parede e tateou ao longo dela. Então se viu no corredor estreito com aquela coisa hedionda na mão.
Mesmo o rosto de sua mulher parecia mudado quando ele entrou no quarto. Estava pálido e ansioso e, para o seu temor, tinha uma aparência anômala. Sentiu medo dela.
—Faça o pedido! — ela gritou, imperiosamente.
—Isto é uma tolice. Uma perversidade — ele disse, hesitante.
—Peça! — repetiu a mulher.
Ele ergueu a mão.
—Desejo que o meu filho viva novamente!
O talismã caiu no chão e ele o olhou, amedrontado. Então afundou numa cadeira, trêmulo, enquanto a velha, com os olhos abrasados, foi até a janela e levantou a persiana. Ele permaneceu sentado até enregelar-se, olhando ocasionalmente para a figura da mulher, que espiava pela janela. O resto de vela, que ardera até a borda do castiçal de porcelana, lançava sombras pulsantes sobre o teto e as paredes até que, com um lampejo mais intenso, se apagou. O velho homem, com uma indescritível sensação de alívio pelo fracasso do talismã, rastejou de volta à cama e, um ou dois minutos depois, a velha senhora, silenciosa e apaticamente, deitou-se ao lado.
Nenhum dos dois falou. Permaneceram em silêncio, ouvindo o tique-taque do relógio. Um degrau rangeu, um rato correu, ruidosamente, a guinchar, pela parede. A escuridão era opressiva e, depois de continuar deitado por algum tempo, tomando coragem, o marido tomou uma caixa de fósforos e, acendendo um, desceu as escadas em busca de outra vela.
Ao pé da escada o fósforo acabou e ele parou outro para acender. No mesmo instante, uma batida, tão silenciosa e furtiva que mal se ouvia, soou na porta da frente.
Os fósforos caíram-lhe da mão. Ele ficou imóvel, com a respiração suspensa, até que a batida se repetiu. Então ele virou e fugiu rapidamente para o quanto, fechando a porta atrás de si. Uma terceira batida ressoou pela casa.
—O que foi isso? — gritou a senhora, levantando-se.
—Um rato — disse o velho, com a voz trêmula. — Um rato. Ele passou por mim na escada.
A mulher sentou-se na cama e ficou escutando. Outra batida — forte — voltou a ressoar.
—É Herbert! — ela gritou. — É Herbert!
Ela correu para a porta, mas o marido se antepôs, e, tomando-a pelo braço, segurou-a firmemente.
—O que você vai fazer? — sussurrou ele, com voz rouca.
—É meu filho! É Herbert! — ela gritou, lutando maquinalmente. — Eu me esqueci de que ele estava a duas milhas de distância. Por que você está me segurando? Solte-me. Preciso abrir a porta.
—Pelo amor de Deus, não o deixe entrar — gritou o velho, tremendo.
—Você está com medo de seu próprio filho! — ela gritou, debatendo-se.
—Largue-me! Estou indo, Herbert! Estou indo!
Houve mais uma batida e mais outra. A velha, com um súbito empurrão, soltou-se e saiu correndo do quarto. O marido seguiu-a até o patamar e, suplicante, chamou por ela, enquanto a mulher, voando, descia as escadas. Ele ouviu a corrente chacoalhar e a tranca de baixo ser deslocada lenta e rigidamente do encaixe. Então a voz da velha mulher soou, tensa e ofegante:
—A tranca! —gritou alto. — Desça. Eu não consigo puxá-la!
Mas o marido estava com as mãos e os joelhos no chão, tateando, procurando desesperadamente a mão do macaco. Se pelo menos ele conseguisse encontrá-la antes que aquela coisa lá fora entrasse! Batidas sucessivas reverberaram pela casa e ele ouviu o arrastar de uma cadeira quando a mulher a colocou no corredor, de encontro à porta. Ele ouviu o ranger da tranca ao ser deslocada lentamente e no mesmo instante encontrou a mão do macaco. Desesperadamente, formulou o seu terceiro e último pedido.
As batidas cessaram subitamente, embora os seus ecos ainda ressoassem pela casa. Ele ouviu a cadeira ser arrastada para trás e a porta se abrir. Um vento frio subiu até a escada e o longo e alto gemido de decepção e tristeza da mulher lhe deu coragem para correr até ela e, em seguida, até o portão. O cintilar do lampião do outro lado da rua alumiava uma estrada calma e deserta.
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Em outros outros links: https://www.esquerda.net/sites/default/files/mao_macaco_0.pdf
Perdoando Deus - Clarice Lispector | Conto Completo
FONTE: https://www.fantasticacultural.com.br/artigo/1228/perdoando_deus_-_clarice_lispector__conto_completo
Eu ia andando pela avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia — e não possivelmente um equívoco de sentimento — que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido.
Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado podia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar — não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele — mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria — e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
Em outros links:
https://omiguilim.wordpress.com/2016/12/13/perdoando-deus/
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Nota do Post:
Eu li este livro em 2001, para na biblioteca da escola e achei sensacional este conto. E não há nada melhor do que ler um livro de papel
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